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Recordações De Um Dentista Aposentado

 


Graduei-me em Odontologia em 1958. O primeiro consultório em que trabalhei foi no bairro Tijuca, na Rua Uruguai e graças a Deus  por poucos meses porque não consegui ter uma clientela. O colega que me alugou o espaço, duas manhãs por semana, era proprietário de uma farmácia no outro lado da rua. Na época com 23 anos de idade, era franzino e tinha “cara de garoto”. No primeiro dia, nada de pacientes e saí decepcionado.  Não era possível naquela rua movimentada, alguém não entrar no consultório para fazer um orçamento ou com dor de dente. Mas pensei: é assim mesmo, calma, você está começando... No segundo dia aconteceu o que eu jamais pensaria acontecer. Entrou o primeiro paciente, um senhor bem aparentado que, ao me ver vestido apenas com um jaleco branco, disse: Bom dia, o dentista está aí? Prontamente respondi: sou eu. Em que posso servi-lo?  Ele me encarou e ironicamente retrucou: Garoto: vai chamar o seu pai! Deve ter pensado que eu era um auxiliar de limpeza ou coisa assim. Foi embora apesar de minha tentativa em convence-lo do contrário. Esta é a minha primeira história na profissão. Tragicômica.

Em outubro de 1959, eu e meu irmão alugamos uma sala e montamos nosso primeiro consultório na Av. Almirante Barroso, em um prédio em frente ao antigo Tabuleiro da Bahiana. Na época, a grande maioria dos profissionais liberais da área da saúde escolhiam o centro da cidade para exercerem suas atividades. Era o chique na época.

No início de 1962 ingressei, por concurso, para o Exército. Patente de Segundo Tenente Dentista. Fui considerado a maior autoridade na comunidade onde morava e meu pai recebeu muitos elogios da vizinhança pelo fato. O meu quepe teve que ser feito sob medida pois os que tinham em estoque afundavam na minha cabeça... Muito hilariante.

Em dezembro de 1962, tive que tomar uma decisão profissional importante. Fui nomeado, também por concurso, para o governo do Estado do Rio de Janeiro para o cargo de Dentista e designado para exercer esta função no IASERJ, no bairro de Madureira. Na época, por Lei, somente algumas profissões poderiam acumular dois cargos públicos. Embora minha decisão na época ser contrária à da família, decidi ficar na vida civil por dois motivos. Primeiro porque estava quase noivo e segundo porque se ficasse no Exército seria designado para qualquer parte do Brasil em qualquer momento da carreira. Além disso, já estava com mais pacientes no consultório, fruto da persistência e dedicação ao meu trabalho. Assim, saí do Exército e assumi o cargo no IASERJ dia 21 de dezembro de 1962, data em que completava 27 primaveras. Mas precisava, além do consultório, de mais uma fonte financeira, além do IASERJ,  para suprir minhas despesas. E o próprio IASERJ, anos mais tarde após meu ingresso, me propiciou esta chance ao inaugurar outro ambulatório em Campo Grande. Sem vínculo nenhum ou estatutário, trabalhava às tardes no novo ambulatório. Às 12 horas saía de Madureira e ia para mais um ganha pão até as 17 horas. Fugia antes da hora para atender alguns pacientes no consultório. Geralmente, chegava em casa, em Laranjeiras por volta das 22 horas. Comia alguma coisa e ia dormir extenuado. Fiz isso por muitos anos. Aos sábados me dedicava integralmente ao consultório.

Tenho duas recordações do IASERJ, uma em Madureira e outra em Campo Grande que na época achei engraçadas mas hoje não pensaria assim. O atendimento odontológico prioritário era extração de dentes e eu virei uma máquina nesse trabalho. Nos dois horários, extraia uma média de 25 dentes. Em alguns pacientes, pequenas obturações. Era o máximo que o IASERJ oferecia aos seus beneficiários. Anestesiava cinco pacientes de cada vez e pedia para aguardarem um pouco na sala de espera. Chamava o primeiro anestesiado e extraia ou obturava o dente motivo da consulta. E assim sucessivamente... Nesta rotina, a auxiliar ao chamar uma paciente, notou estar descalça. Indagada por mim sobre o porquê disso, simplesmente respondeu: por educação. Me calei porque esta cultura é essencialmente japonesa e ela parecia bem brasileira. Mas o mais incrível aconteceu depois. Ao convidá-la para sentar na cadeira, ela sentou-se no lugar destinado para colocar os pés. Risos da secretária que a ajudou a sentar-se no lugar certo. Mais incrédulo ainda aconteceu quando durante a consulta lhe pedi para cuspir. Ela saiu da cadeira, deu uma volta por trás da mesma, cuspiu na cuspideira e voltou ao seu lugar. Deixo para o leitor analisar estes comportamentos estranhos...

Outra recordação foi no Ambulatório de Madureira. Uma senhora portuguesa entrou acompanhando sua filha, uma linda menina aparentando ter seis anos e, parecendo estressada, foi logo falando: olha Dr. eu vim aqui porque já fui em quatro colegas seus que me falam a mesma coisa mas eu não acredito. Com calma, coloquei a menina na cadeira e perguntei: qual é o problema e o que que os quatro colegas estão concordando? A senhora, apontando para os primeiros molares inferiores, disse: os seus colegas afirmam que esses dentes são permanentes mas como pode isso se ela ainda não perdeu nenhum dente aí atrás?  Eu, continuando calmo, após um exame bucal rápido falei: senhora, os quatro colegas estão absolutamente corretos e vou lhe explicar para que entenda. E resumi a sequência e transição da dentição decídua para a permanente. Que aqueles dentes eram os primeiros molares permanentes que nascem atrás dos segundos molares de leite. Durante a minha fala, ela permaneceu calada mas sempre abanando a cabeça discordando. Os colegas já estavam olhando para mim talvez prevendo minha reação final. Perguntei delicadamente se tinha entendido e agora acreditava no que os dentistas afirmavam. Ela, olhando bem nos meus olhos, disse: Pra falar a verdade Dr. eu não acredito. Não tive dúvidas. Retirei a menina da cadeira e, apontando a porta de saída, disse para a senhora: por favor, retire-se. Se a senhora não acredita na palavra de cinco colegas, não posso mais prolongar esta consulta. Tenha uma boa tarde.

Pós graduei-me em Ortodontia em 1978 e um dos meus primeiros pacientes foi meu filho Ricardo. Fiz um convênio com a Petrobrás exclusivo para Ortodontia. Isso me possibilitou, além da clínica geral, atender pacientes para tratamentos ortodônticos. Embora não recusasse tratar pacientes adultos nesta especialidade, a maioria eram adolescentes, na faixa de 11 a 14 anos de idade, filhos de funcionários da citada empresa. Sendo um dos primeiros credenciados e com o consultório próximo ao seu prédio principal, na Av. República do Chile, não demorei muito a receber muitos pacientes. Cheguei a ter 60 pacientes em tratamento e isso me fazia feliz e realizado profissionalmente.

Mas tratar de adolescentes não é tão fácil assim se considerarmos que um tratamento ortodôntico demora em média 30 meses. Tinha problemas com eles em diversos aspectos, principalmente em relação ao cumprimento das normas que um tratamento desse tipo exige: higiene e escovação correta dos dentes, uso de dispositivos noturnos e posicionamento correto de elásticos intermaxilares, entre outros. Quando meus argumentos não faziam efeito, chamava os responsáveis. Com isso, havia inicialmente uma melhora principalmente na escovação. Mas, dois ou três meses depois, o retorno de tudo. Não poderia vigiá-los 24 horas por dia. Portanto, o negócio era ir levando...

Dos pacientes adolescentes, uma me traz uma recordação muito dolorosa profissionalmente embora tenha me deixado um ensinamento de vida. Era uma paciente dócil e sempre cumpriu as normas disciplinares para o tratamento. Entretanto, na mecânica da terceira e última fase do seu tratamento, arcos ortodônticos especiais exigiam o uso de elásticos intermaxilares 24 horas por dia para evitar riscos de quaisquer recidiva no posicionamento dos dentes. Confiando na colaboração dela, orientei-a, forneci os elásticos necessários para 30 dias e agendei sua próxima consulta para o mês seguinte. Qual não foi minha decepção no dia agendado ao examiná-la e notar que os dentes voltaram todos para sua posição original, inutilizando, assim, toda a segunda fase do tratamento até então realizado. Pedi a ela o saquinho dos elásticos fornecidos e os contei. Foram poucos os que usou. Não suportei esse fato e, com voz imperativa, lhe dei um baita sermão. Ela, de cabeça baixa não reagiu. Quando finalmente me encarou, vi lágrimas nos seus olhos e apenas disse: Doutor, sou um ser humano e posso errar. E agora, o que falar com ela? Minha cara foi no chão, pensei apenas em um resultado profissional e deixei de lado o que não pode faltar em nossa vida: o perdão em tudo.

Me acalmei e agora, com voz baixa e paternal, expliquei que o fato tinha que ser comunicado à sua mãe e também em relatório à Petrobrás para autorizar um período maior de tratamento. Ela acenou positivamente com a cabeça e ao se despedir, abraçou-me e sussurrou: me perdoe doutor.

 

 

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Enquanto isso na comunidade seresteira de Conservatória:

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